Como foi
mencionado em postagem anterior, o texto "PRODUÇÃO, PRESERVAÇÃO E
TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO" foi dividido em partes. A seguir as partes
que versam sobre a participação das universidades na construção e transmissão
do conhecimento e as preferências daqueles que se dispunham a ser os peregrinos
do saber.
3 - A
participação das Universidades na construção e divulgação do conhecimento
Se os mosteiros
eram instituições eficazes para organizar o conhecimento num mundo em que o
cristianismo dominava, por que surgiram as universidades?
A surpreendente
recuperação econômica da Europa no século XII foi a responsável pelo primeiro
período de mobilidade que explica o reordenamento do saber promovido pelas
universidades.
No século XII
em particular, o mosteiro passou por um período de grande florescimento. As
universidades não surgiram para o substituírem.
Em um primeiro
momento alguns conceitos devem ser estabelecidos. As universidades medievais
eram profundamente diferentes das que conhecemos e nasceram de forma espontânea
em torno de agrupamentos de professores e estudantes. Eles precisavam de
lugares com infra-estrutura: alojamento, fornecedores de material (papel,
tinta, canetas), locais em que pudessem se divertir, como tavernas e bordéis.
As
universidades não tinham campus e prédios. O termo "universitas" era
aplicado a um grupo de pessoas e poderia se referir a qualquer associação que
se propusesse a algum trabalho com apoio mútuo e barganha coletiva contra os
que não pertencessem ao grupo. Ex: associação de mercadores, de artesãos, de
alfaiates, de curtidores.
As
"universitas" de estudiosos eram compostas de: Mestres (professores),
Artífices (bacharéis) e Aprendizes (estudantes). Num trabalho conjunto,
mestres, bacharéis e estudantes estavam destinados a realizar um trabalho que
conduzisse a treinamento vocacional, à época, para pregadores, advogados,
teólogos e doutores.
Quando surgiram
as Universidades? ("universitas" de estudiosos)?
Ao longo dos
séculos XI e XII a Europa teve uma recuperação surpreendente depois dos golpes
sofridos durante o declínio de Roma. Não só a produtividade agrícola aumentou.
O comércio prosperou e a população começou a interagir com base em dinheiro e
contratos. Juramentos e tradições já pertenciam ao passado.
Muitos homens
jovens aproveitaram a prosperidade para viajar em busca de conhecimento. Eram
verdadeiras peregrinações acadêmicas levando alemães a Paris para aprender
Teologia, poloneses a Bolonha para estudar Direito, ingleses a Toledo para
traduzir textos científicos árabes.
Foi tumultuado
o período em que as "peregrinações acadêmicas" chegaram à Europa. Os
estudantes tinham consciência de seu poder econômico, viviam em estalagens, não
tinham quem se responsabilizasse por eles (parentes p. ex.) em suma não eram
cidadãos europeus.
Sendo grupos
muito numerosos, era comum surgirem desentendimentos entre eles, principalmente
em horas de lazer após ingestão, quem sabe exagerada, de vinho. Muitas vezes a
situação fugia do controle. Logo no início, em 1200, eram julgados por seus
próprios mestres, situação definida por um edito real.
Por volta de
1215 foi decidido que para crimes mais graves (morte e estupro), seriam
julgados por autoridades seculares.
Mas, em 1229,
estourou uma rebelião novamente por causa do excesso de vinho num período de
carnaval e o caso foi além dos limites, até para a indulgência real.
Esse fato levou
a uma "grande dispersão". Muitos professores imigraram e
universidades totalmente novas foram fundadas em Orléans, Toulouse e outras
regiões. Alguns professores cruzaram o canal da Mancha e foram ampliar
universidades já existentes em Oxford e Cambridge, conferindo àquelas cidades
um lugar de destaque na história intelectual da Europa.
Durante esse
período foram criadas "faculdades" para tentar garantir maior
disciplina, melhor estrutura e apoio aos estudantes, muitos dos quais com
apenas 14 anos, época em que iniciavam seus estudos formais.
Uma faculdade
dispunha de um espaço físico próprio onde residiam alunos e mestres o que
favorecia as relações cidade/ estudantes, já que eles ficavam alojados sob a
vigilância dos mestres. Estes ficavam atentos a casos de embriaguez e violência
procurando canalizar as energias para outro tipo de divertimento.
Muitas
faculdades tiveram sua origem em instituições de caridade que ajudavam jovens
pobres e promissores fornecendo-lhe alimentação e alojamento. A Sorbonne foi um
exemplo disso e pode ser criada com uma doação de Robert de Sorbon.
A prosperidade
da Europa durou ainda um tempo, mas sofreu um declínio em meio a rebeliões,
guerras, fome, até que a Peste Negra de 1348, apesar de dizimar muita gente, de
certa forma colaborou para o reerguimento econômico, graças ao empenho dos
sobreviventes. Assim, a Europa se restabeleceu economicamente.
As
universidades, àquela altura, (séc.XIV) já tinham um formato similar ao que
conhecemos atualmente e, instalando-se em cidades pequenas, espalharam-se por
todo o continente europeu.
Os estudiosos
restabeleceram contatos com o mundo mediterrâneo que se estendia além da
cristandade latina e, durante alguns séculos, continuaram se agrupando enquanto
a Europa começava a se unir.
4 - As
preferências dos peregrinos do saber
4 - 1 Teologia e Artes Liberais em Paris
Desde 1200,
acadêmicos chegavam em número bem significativo à Île de la Cité e
circunvizinhanças mostrando seu poder econômico e querendo se dedicar à
Teologia e às Artes Liberais. (Île de la Citè) é o coração de Paris que, à
época, era o centro internacional de Teologia.
Outros locais
de peregrinação acadêmica criaram suas próprias escolas e áreas de
especialização que serviram de modelo a ser seguido por muitas outras. Temos
Bolonha (em Direito), Salermo em Medicina e muito depois, Praga em Artes Liberais.
As primeiras e
mais importantes faculdades parisienses foram as das ordens religiosas
mendicantes fundadas em 1216 : (os dominicanos e os franciscanos). Os frades
dessas ordens pretendiam dar uma resposta religiosa aos desafios da mobilidade
na Europa do séc. XII.
Seguiam uma
regra (semelhantes aos monges). Faziam votos (obediência, castidade e pobreza)
mas não se prendiam aos mosteiros e viviam pregando nas cidades em expansão,
vivendo de esmolas e doações que recebiam. Daí o nome "mendicantes".
Quatro anos
depois da criação da ordem, os dominicanos abriam uma faculdade de Teologia em
Paris e, logo depois, em Bolonha.
Os franciscanos
chegaram em 1218 com força total, superando a hostilidade à erudição, defendida
por seu fundador (Francisco de Assis).
As ordens
mendicantes amenizaram a divisão que havia entre escolásticos e monásticos,
frades e mestres tradicionais e essa reaproximação lançou as bases para a
elaboração sistemática e a prática da teologia.
Considerando
que os livros da Bíblia já estavam reunidos num volume único, o que facilitava
seu manuseio, e que cada livro que a compunha estava dividido em capítulos e
ainda possuía as "Concordâncias" que identificavam as passagens mais
difíceis e seus respectivos contextos, já dispunham de uma inovação intelectual
para iniciar seu trabalho.
E, no rigoroso
currículo de teologia que foi se consolidando em Paris, a busca da investigação
racional ficou institucionalmente ligada e subordinada à tarefa de, junto à
sociedade, fazê-la entender o significado de ser cristão.
Um dominicano
parisiense, Tomás de Aquino (1225-1274) se dedicava a algumas questões
intrigantes como :"Pode Deus fazer o que Ele não faz, ou não fazer o que
Ele faz?". Analisava-as meticulosamente baseando-se na filosofia de
Aristóteles. Aprimorou-se em teologia e escreveu a Suma Teológica que era o
maior resumo de teologia da época.
A essa altura a
educação universitária passou a ter nova mentalidade.
A concentração
física, a segurança gerada pelo tamanho do grupo, a proteção real propiciaram a
que os acadêmicos se dedicassem unicamente à busca do conhecimento.
A liberdade que
os acadêmicos tinham em levar o conhecimento para onde quisessem permitia
partilhar com outras universidades os mesmos currículos os mesmos livros e
metodologias. Essa prática fez do estudo universitário, coroado pela
tecnologia, a primeira forma de conhecimento internacionalmente reconhecido da
Europa.
4 - 2 O Direito em Bolonha
A Universidade
de Bolonha estava no pico da fama no século XIII. Com 10.000 estudantes suplantava
Paris conhecida na Teologia e Artes Liberais, que tinha 7.000. Esse números
eram extraordinários para a época.
A escola de
Bolonha destacava-se no Direito tanto civil quanto canônico (as leis da
Igreja). Era escolhida por razões práticas, utilitárias. O Direito preparava os
estudantes para carreira nos tribunais, na diplomacia e na burocracia
governamental, ou até a serviço a um bispo.
Quando chegavam
a Bolonha como estrangeiros os intelectuais não tinham vantagens inerentes aos
cidadãos locais. Sem a proteção básica estavam sujeitos a situações
"delicadas" como, por exemplo, serem procurados com a exigência de
pagamento de dívidas deixadas por concidadãos seus, uma prática conhecida como
represália. Esses episódios os levaram a se unirem em defesa de interesses
comuns como controle de aluguéis e isenção fiscal.
Bolonha possuía
uma economia comercial forte, mas o poder de governo era deficiente, já que o
imperador romano por razões inerentes à conquista de territórios nos Alpes
alemães, e morando lá, dispunha poucos meios para governar.
Para ganhar a
lealdade dos acadêmicos que se exilaram por amor ao conhecimento, o imperador
assinou um decreto em 1158 garantindo-lhes segurança em seus trajetos pelas
estradas, liberdade de não sofrer represálias e o direito de serem julgados por
seus próprios mestres.
Na verdade
Bolonha tinha duas "universidades" rivais, uma para mestres outra
para estudantes, mas a economia e a política deram aos estudantes uma posição
mais vantajosa. Naquela época, eram os estudantes quem pagavam aos professores.
Esses estudantes tinham maturidade, poder de barganha para contratar e demitir
professores chegando até a fazer greve visando melhorar condições. Os
professores até pagavam multa se porventura se atrasassem. Se abandonassem os
cursos ou se os deixassem incompletos, deveriam reembolsar os alunos
proporcionalmente.
Ao final do
século XIII, os mestres em Bolonha eram empregados assalariados da própria
comunidade.
Apesar de todas
essas circunstâncias a faculdade de Direito de Bolonha tinha um ótimo conceito
nos níveis regional e internacional, particularmente no Direito Canônico.
4 - 3 A Medicina em Salermo
Sabe-se por
documentos da época que a cidade de Salermo, no sudoeste da Itália era um
famoso Spa medicinal na região mediterrânea já no início dos anos 900.
O ambiente era
acolhedor: céus azuis, muitas palmeiras e brisas oceânicas atraíam os enfermos
e os desanimados: esses mesmos atributos atraíam a comunidade de terapeutas e
médicos eruditos que trabalhavam lado a lado de leigos práticos que vendiam
ervas e remédios populares. Havia também mulheres que tinham sabedoria
ginecológica e praticavam tratamentos que mais tarde foram transmitidos a
(leitores homens) na Escócia e na Polônia através de textos "salernitanos"
conhecidos como "Trotula" - um compêndio medieval de medicina
feminina.
Não existia
nenhuma escola oficial nem organização corporativa para credenciar ou proteger
os vários curadores de Salermo. Todos competiam entre si, mas a comunidade
médica tinha vitalidade, resultado do dinamismo urbano que precedeu a fusão
formal das universidades.
Os médicos de
Salermo sonhavam com a possibilidade de terem todos os tipos de medicina de
todos os povos trabalhando unidos, já que muçulmanos, judeus e cristãos
(católicos romanos e ortodoxos) passavam ali por mar ou por terra. Os
salernitanos tiveram também acesso a Hipócrates e Galeno através de textos
gregos que haviam sido revividos por continuadores islâmicos. (Galeno exercia
medicina em Pérgamo e Hipócrates é o Pai da Medicina)
Vale lembrar
que a bíblia da medicina medieval, o Cânone de Avicena foi escrito por um
muçulmano. Avicena vem de (Ibn Sina em persa e árabe).
A Sicília e o
sul da Espanha, dominados pelos muçulmanos eram lugares tão ricos de
conhecimento médico e científico que atraíam cristãos dos mais longínquos
pontos, inclusive da Inglaterra. Cidades como Salermo, Montpellier(hoje França)
mas à época, submetida à coroa espanhola, Barcelona e Valença definiam um arco
de cidades costeiras com o mesmo foco. Nessas cidades os praticantes da
medicina desejavam se beneficiar da proximidade da tradição científica de alto
nível existente no Mediterrâneo islâmico.
Quando Salermo
perdeu seu destaque, Montpellier a substituiu, tornando-se a primeira cidade da
Europa a possuir um corpo docente universitário no campo da medicina. Nessas
cidades os praticantes da medicina puderam auferir os benefícios da proximidade
da tradição científica de alto padrão no mediterrâneo islâmico. Os judeus, em
particular, eram prestigiados mesmo em reinos cristãos e nomeados médicos da
Corte. Além de exercerem sua profissão, eram consultados pelos reis a respeito
de questões políticas; pelos tribunais que se apoiavam neles para provas
judiciais e até a Igreja precisava deles ao analisar processos de anulação de
casamentos. Os médicos estavam treinados por um método que atendia aos
questionamentos verbais, podendo reagir rapidamente e convencer os leigos de
seu conhecimento.
Para a
medicina, teologia e direito, a exploração intelectual estava vinculada à
utilidade social, quase uma pré-condição.
Os que
lecionavam nos diversos tipos de universidades possuíam uma autonomia especial;
estavam como que entranhados na sociedade já que serviam ao mundo que os
cercava.
4-4 Praga e as Artes Liberais
A Universidade
de Praga, criada em 1348 pelo imperador Carlos IV é a última das universidades
verdadeiramente internacionais da época. Localizava-se na capital das terras
checas e assim como ocorreu em Paris e Bolonha recebeu grupos formais de
estudantes, "nações", conforme lugar de origem. Poucas vezes as
nações correspondiam a divisões étnicas. Em Paris a nação "francesa"
incluía italianos gregos e espanhóis e a nação "inglesa/alemã"
abrangia todos os demais. O foco da Universidade de Praga era reproduzir o
melhor que havia em Paris e Bolonha e parecia pronta para se destacar
intelectualmente no continente europeu. Não havia inovações no currículo de
Praga. A universidade funcionava como as anteriormente mencionadas (Paris e
Bolonha) visando preparação básica para estudos sobre (gramática, retórica e
lógica) num só bloco e também (aritmética, geometria astronomia e música) em
outro bloco. Juntas, essas 7 artes liberais herdadas da Roma antiga são até
hoje nominalmente reconhecidas nos títulos de bacharel em Artes e mestre em
Artes.
Como em outras
universidades europeias, os professores de Artes Liberais floresciam em Praga.
As faculdades de Artes Liberais permitiam que seus mestres desfrutassem de
acentuado grau de liberdade mas os checos reconheciam a pouca relevância das
artes liberais como preparação para as ocupações no mundo real. Assim, em
Praga, a maior parte dos mestres em Artes Liberais, em sua maioria checos,
estava se preparando simultaneamente para o bacharelato em Teologia: lecionavam
em algumas faculdades e financiavam seus estudos avançados em Teologia.
Os grupos de
estudantes, "nações", eram adeptos da auto-organização em corporações
que poderiam garantir a defesa de interesses comuns.
Considerando
que estudantes de língua alemã representavam um contingente dominante na
faculdade de Teologia (em cada quatro estudantes, três eram de origem alemã),
por ocasião de decisão por voto, os checos não tinham muita chance.
Como os
estudantes dos estudos avançados em Teologia se consideravam estrelas promissoras,
começaram a se ressentir com a arrogância dos alemães. Esse ressentimento
gerado por razões sociais teve um agravante (questões teológicas).
Alguns checos
da Boêmia em viagem à Inglaterra tiveram acesso a escritos de John Wiclif
(1324-1384), um teólogo oxfordiano que defendia uma religião mais pura, mais
leiga e descentralizada. Afirmava que nenhuma instituição humana seria capaz de
incorporar a perfeição espiritual exigida pela única verdadeira igreja de Deus.
Para ele a tarefa de administrar o cristianismo cabia aos poderes seculares, o
que chamava de "religião política". Baseados nessa justificativa
filosófica os checos passaram a defender uma igreja nacional. A questão gerou
um impasse quando em (1408-1409)a nação checa retirou dos alemães o direito de
voto. Como eram (anti-Wyclif), os alemães retiraram-se em massa. Cerca de 1200
deles saíram de Praga e foram fundar uma nova universidade em Leipsig. Enquanto
isso o checo John Huss, que defendia uma teologia alinhada a aspirações
nacionalistas, entra em cena e passa a pregar aos checos a favor de uma igreja
checa, na Capela de Belém em Praga.
O filho e
sucessor do rei Carlos (Venceslau IV) ratificou os novos privilégios da nação
checa.
Os cidadãos de
Praga subsidiaram bolsas para estudantes universitários e criaram para eles uma
faculdade ligada à Capela de Belém.
Não foi o
melhor momento para essa decisão: "nacionalizar o ensino
universitário". Muito menos abordar um assunto tão delicado como
hierarquia católica romana.
A Igreja
Católica Romana estava vivendo um momento muito delicado. Nenhuma instituição
de cunho religioso ou secular falava em nome da cristandade latina. Um concílio
foi convocado para resolver o impasse: o "Concílio de Constança" em 6
de julho de 1415.
O sonho do rei
Carlos IV de fazer de Praga um novo centro no contexto intelectual do
continente europeu não se realizou. A vinculação do contexto religioso à
geografia social e política foi um entrave nesse processo.
A mobilidade
acadêmica motivada pela expectativa de enriquecimento intelectual, que foi
responsável pelo crescimento das primeiras universidades, se restringiu de
forma drástica em consequência de sucessivas guerras religiosas. A Europa da
segunda metade do século XV convivia com acadêmicos das mais variadas
formações: protestantes expulsos da França católica, porém excepcionalmente
letrados, missionários que iam para o interior ou para outros continentes com o
propósito de atrair seguidores para a Igreja romana. Esses acontecimentos como
um todo ameaçavam a cultura acadêmica internacional europeia que tinha como
mote o diploma universitário, uma credencial válida em qualquer lugar e que
agora apenas informava que aquele acadêmico conhecia bem uma ou outra das
versões de mundos rivais.
Nessas
condições de crise em que a religião politizada devastava a Europa surge uma
comunidade internacional do saber que parcialmente complementava as velhas
universidades. Era a República das Letras que não fazia distinção de origem,
status social, gênero ou diploma acadêmico. Colocava-se acima de diferenças de
idioma, nacionalidade e sobretudo de religião. Todos os seus membros eram
considerados iguais e a admissão nessa comunidade não tinha protocolos mas a
grande expectativa de que todos se empenhassem para uma convivência harmoniosa.
A República das
Letras era vista como um empreendimento colaborativo que reunia estudiosos de
toda a Europa e atendeu a muitas gerações possibilitando a recomposição do
saber europeu. Alguns dos maiores pensadores do ocidente (Erasmo e Copérnico),
(Descartes e Galileu ) participaram dela para aprimorar seus conhecimentos.
Descartes definiu muito bem o aspecto colaborativo da República das Letras:
"Com os recém-chegados começando onde os primeiros pararam e, desse modo,
ligando as vidas e o trabalho de muitas pessoas podemos todos juntos ir muito
além do que conseguiria cada pessoa individualmente."
República das
Letras - seu perfil
A República das
Letras era administrada pelos cidadãos que a compunham mas sua forma de
cidadania não se apoiava em leis formais ou instituições. Era uma cidadania
internacional. Qualquer pessoa que obedecesse as regras de conduta civil
poderia a ela se vincular.
Era uma
comunidade internacional do saber, inicialmente utilizando cartas escritas à
mão enviadas pelo correio e depois, jornais e livros.
A ideia de
enviar cartas tem origem antiga. Cícero, orador romano (106-43a.C), dedicava-se
a estudos em sua casa de campo e à correspondência com amigos cultos sempre que
lhe sobrava um tempo. Assim, aprimorava a mente e refinava sua oratória.
Na República
das Letras não era usual uma comunicação pessoal entre os participantes. Muitas
vezes se correspondiam durante muitos anos sem um único encontro.
Sobre o perfil
dos integrantes percebe-se uma mescla de burgueses, aristocratas, mestres
tipógrafos, educadores, integrantes da hierarquia da Igreja, missionários,
jesuítas, ordens religiosas, pastores evangélicos e abades católicos. A
"República" atravessava fronteiras e gerações.
Considerada um
empreendimento de parceria acreditava num crescer ilimitado que ia além da
tarefa de recuperar o "saber" já existente. Os eruditos do
Renascimento escolheram a correspondência (cartas) como a melhor forma de
registrar contatos intelectuais. Escrever cartas permitia "pensar
localmente e agir globalmente ".
Como definiu
Erasmo de Roterdã (1466-1536) "a carta é um tipo de troca mútua verbal
entre amigos ausentes".
Havia cartas
chamadas" múltiplas" que continham notícias as mais variadas. Cada
parágrafo continha uma informação, às vezes, preciosa. Por exemplo, dados sobre
fenômenos da natureza, eclipses, descoberta de estrelas, invenções como a do
microscópio, em 1673, em Amsterdã.
Resumindo, a
carta era um substituto da conversação cavalheiresca onde polidez, generosidade
benevolência e especialmente tolerância eram virtudes presentes. Enfim, cartas
testemunhavam troca de informações e uniam amizades intelectuais.
A República das
Letras baseou sua legitimidade também na produção de novos conhecimentos.
Graças a seu legado, a cooperação internacional continua a ser até os dias de
hoje, uma característica da intelectualidade ocidental.
Intercâmbios
cada vez mais frequentes entre países desenvolvidos promovem o avanço da
Ciência, Tecnologia e Conhecimento do mundo atual. A publicação de teses de
doutoramento e outras produções desses mesmos pesquisadores ajudam a compor a
trama do saber.
Concluindo, a República das Letras foi
constituída num momento de crise na Europa. Surgiu como uma instituição do
Saber, de cunho alternativo, que parcialmente complementava a velha.